Ensaiando um regresso ao convívio de meus confrades Tarnished, e uma explanação há muito devida: recentemente comecei a estagiar na Casa Publicadora Vó Torta, e meti-me num amplo projeto de recolha relativo à obra do elefantino Receoso Saraiva, crítico cinematográfico atuante em diversos periódicos de língua portuguesa, da década de 1930 até fins da década de 1970. Embora me agrade, trata-se de trabalho bem exaustivo, do qual permiti-me poucas pausas no longo das últimas semanas. Tentarei retomar o frenesi postante do início deste sítio, mas antes de me despedir, deixo com vocês um excerto de uma das críticas mais contundentes de Receoso, publicada no "Diário de Iguaba Grande" a 1970, com respeito ao filme "Duas Garotas Românticas", de Jacques Demy.
Atenciosamente,
Ismar
A ligeireza de "Duas Garotas Românticas", ao fim e ao cabo, não convence a ninguém. Malgrado seu caráter faceiro de mero 'divertissement', a fita -- posto melhor, Demy, responsável por este desastre de locomotiva -- não consegue muito bem dissimular suas pretensões a um suposto 'cinema puro', tampouco o agressivo subtexto subservivo (sic) que corrói cada quadro que se imprime ao écran. Há um crasso senso de utopia permeando todos os cantos desta Rochefort colorida ao extremo da mania, uma veleidade de ´coisas melhores´ envenenando cada quadro que vai mancando perante os olhos estupefatos do ´moviegoer´ que faz por sua higiene mental. Compete a nós, homens de imprensa moralmente aptos e de índole indefectível, alertar o mundo quanto à mensagem insidiosamente devastadora que Demy esta tentando passar à gente moça do corrente. Este universo de possibilidades amorosas, cançonetas tolas e belos (sic) dançarinas contamina a juventude, apondo-lhe idéias completamente contrárias ao bem-estar de nossa triunfante nação. Não se trata apenas de uma questão de realismo -- as fitas americanas não são realistas, mas são boas, ao passo que esta, não o é -- trata-se, antes de mais nada, de escrutinizar esta irrealidade que Demy propõe, e entender o que há nela de incitação e amoralidade, que estas coisas há, e em abundância. Tanto mais perigosa é a fita por sua desonestidade, sua falsa leveza, sua adoração leviana das artes e do amor (não apenas o amor entre os jovens, também entre pessoas de mais idade, o que me pareceu especialmente acintoso). Dói-me muito a presença de Gene Kelly nisto daqui, parece-me que este outrora dinâmico intérprete está a empreender esforços conscientes para tripudiar suas mais áureas conquistas no âmbito cinematográfico. Com efeito, certos homens envelhecem e vão perdendo o contato com a realidade dura das coisas. É preciso vigiar. Mais do que tudo, é preciso estar vigiante.
(Receoso Saraiva, "Romantismo e Subversão", 12-01-1970)
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